terça-feira, 22 de novembro de 2011

SONHAVA SER ESCRITOR

Pão com margarina e uma xícara de café preto. Era o que tinha. Maldita mania de insistir num sonho idiota de ser escritor. Salivava imaginando um bife extremamente mal passado com dois ovos fritos com as gemas quase cruas. Não tinha esse prazer há tempo perdido, não por falta de condição, mas por falta de foco. Estava mais preocupado com as letras.

O all star rasgado dava um ar meio cool, meio descolado. Para uns desleixo, para outros falta de dinheiro mesmo. Dizia para as pessoas que tinha uma relação doentia e possessiva com seus calçados. Só usava uma marca. Comprava novo e usava até desmanchar, sem jamais lavá-lo. Criatividade de escritor que pegava excêntrico nas rodas sociais e criava um problema a menos na carteira e no armário.
 
Sua companhia bastava para ele. Sentia-se à vontade com a sombra mas reclamava da luta quixotesca. Vitimista reclamava que até Sancho Pança o havia abandonado. Cansou e foi viver a própria biografia como contínuo num escritório de contabilidade.

Máquina de escrever sobre a mesa, papel branco esperando para ser pintado de letras e nada. Sonhava em ser escritor mas há muito tempo não tinha inspiração ou sua história tinha acabado.

Olhou uma resma de contos empilhados um a um. Único boneco do livro que lhe consumia a vida até aquele momento. Acendeu um cigarro que ele mesmo havia enrolado, tragou fundo e pensou no meio da fumaça. Tinha certeza que acordaria de ressaca na manhã seguinte.

Levantou-se, pegou a pilha de papel e posicionou perfeitamente no centro da lata de lixo. Álcool e um fósforo. Rápido e quase indolor. O melhor recomeço para qualquer livro mal acabado. Suicidou a carreira, trancou a porta pelo lado de fora, e foi escrever outra história.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

RITALINA E CHOCOLATE

O ar tinha cheiro de ritalina e chocolate, pesado e deliciosamente doce, quase viciante. Era uma atmosfera antagônica, cheia de figuras diametralmente opostas, todas quase do mesmo tamanho. Duas janelas em formato elíptico refletiam uma luz âmbar que traziam paz, calma, alegria, hipnotismo, mas que tinham certa dificuldade de alcançar o fundo escuro, e de alguma forma refletiam imagens aleatórias, projetadas do lado avesso. Palavras voavam alucinadamente pelo teto em cúpula que parecia pulsar enquanto cuspia relâmpagos de todos os tamanhos. Medo, alucinação, frustração, sexo, insegurança, tara, amor, trepar, carinho, trabalho, receio, temor, segurança, paz, libido, tinta, papel, formas, dinheiro, copo, corpo, morrer, orgasmos, múltiplos. Das laterais da sala redonda ecoavam gritos ocos, esquizofrênicos, gemidos de prazer, tesão nítido, gozo. A força dos relâmpagos aumentou tão desproporcionalmente que não era possível enxergar por causa da claridade intensa. As janelas estavam fechadas. Meu nome vibrou tremulo em gemido ofegante. Arrepio. A paz se instalou e os relâmpagos mudaram de cor para um tom azulado. Silencio. Eu precisava sair correndo da sua cabeça, para que você pudesse sair da minha.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

PREFERIA SER CEGO

Durante os ataques de ciúme ele costumava gritar para o quarteirão ouvir que preferia ser cego a vê-la de conversa sensual com outro homem.

Ela negava, sempre dizia que a conversa era pudica, e que não havia motivo para toda aquela crise. Mentia sem saber.

Ela tinha a pele pervertida e os olhos devassos. Exalava sexo pelo espírito. Linda, desfilava com todos os seus defeitos de fabricação escondidos do grande público debaixo de muito ansiolítico.

Ele declarava sua paixão todos os dias. Exaltava a beleza do seu miolo e todas as suas curvas saborosas. Ficava tão extasiado de elogiá-la que ao final de cada conversa teimava em roubar um beijo. Ela fingia que não aprovava sem mover o rosto e o sorriso, mas não confiava no amor declarado.

Amantes de alma, perdidos de si pela vida. Ele não cansava de insistir, ela não cansava de questionar por quê?

Afastaram-se por alguns pares de calendários até quando ela o encontra envelhecido na rua, andando com uma bengala e olhar estático, brilhante e perdido. Havia escorrido a vida dos olhos. Nesse momento, com um par manco de olhares, e sem que ele percebesse, foi que ela ouviu seus anúncios dedicados. Ressoaram no eco que ela tinha em si desde o dia que ele partiu por desistência.

Casaram-se semanas depois, e feliz ele se contenta em tê-la no escuro para admirar a beleza do rosto e a delícia das curvas com as pontas dos dedos, e o suor da boca com a ponta da língua.