segunda-feira, 31 de outubro de 2011

BEBERAM O AMIGO

para Eduardo Guedes Pinto

Beberam o amigo no coração. Um hábito estranho que se desenvolveu naquele grupo depois que começaram a descer a ladeira. Óbvio, já haviam passado da desequilibrada adolescência para a vida pronta, formaram famílias, ganharam dinheiro, e estavam começando a morrer.

Um penoso final de biografia. As pupilas já não reagiam e o cérebro não religou. Motor de carro, consertaram mas resolveu não pegar. Um milhão de analogias, todas com o mesmo final inesperado, chocante, assustador.

Muitos repensaram a própria história de maneira verdadeira, sem os discursos básicos do post mortem. O consenso disse que viver era a alternativa e a verdade absoluta. Beco sem saída.

Encheram novamente os copos com cerveja preta. Dava consistência, matava a fome, sustentava mais que pão e na sua formulação altas doses de anestesia.

Uma cadeira vazia e nós no estomago de todas as outras. Fingiam não ver, mas a cadeira agora perpétua, imóvel, espera que num domingo pela manhã alguém durma ali sentado, levante-se, vá embora e volte dias depois. Nunca mais aconteceu.

As pupilas já não reagiam. O cérebro não religou, e quando o coração parou de bater, parou também muitos outros, que para comemorar todas as vidas, principalmente aquela que já não havia, beberam mais uma vez o amigo.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

POESIA DE 1h30

Ele estava jogado no sofá. O cão, o cara, parceiro deitado a seus pés. Nem o cachorro o entendia mais. As coisas não o interessavam. Televisão ligada com alguma imagem que não importa o que era. Pensava nela. Levantou-se, foi até a cozinha fuçar a geladeira como num hábito maldito que precisava executar, apesar de saber que a geladeira estava fazendo eco. Nem uma porra duma garrafa d'água estava ali. Tinha gelo no freezer. No armário havia uma barrinha de cereal, um pacote com quatro bolachas de aveia e um saco de chá instantâneo. Chá, gelo e vodka. Voltou para a sala carregado. Na mesa o copo cheio de vodka quente ao lado da garrafa pela metade. Misturou tudo e mexeu com o dedo. Hábito de brasileiro, no mundo, o único povo que mexe o drink com o dedo. Um gole. Desceu rasgando a garganta. Era melhor esperar o gelo derreter mais um pouco. Pensou nela outra vez e nos Bloody Marys que tomaram juntos. Mais de duas da manhã. No corredor colocou o i-pod no ouvido. A mesma musica. Inevitavelmente pensaria nela. Foi para a cama. Na cabeceira um livro de José Resende Junior: “Mulher Gorila e Outros Demônios”. Lembrou-se de Bang Bang. Texto fantástico. Teve vontade de ler um pouco. A vontade mudou. Transformou-se em vontade de escrever. Pensou qual poderia ser o assunto. Estava feliz e não era efeito do álcool. Pensou que Hemingway tinha razão: "Todos os bons livros se parecem: são mais reais do que se tivessem acontecido de verdade." Taí, iria misturar ficção e realidade, receita antiga, mas com pitadas do seu jeito torto de escrever, e talvez aproveitasse para inventar uma historia qualquer, sobre algum personagem, só pra dizer que pensava nela, e já eram três e meia da manhã.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

OFF

Já não sabia mais quantas vezes aquele pedaço de música se repetia na tela da TV. O filme tinha acabado há horas, e o menu do DVD estava lá pedindo para ser desligado, mas o vôo estava muito alto, naquela altura o que tinha virado barulho já não era perceptível .

O que incomodava sua cabeça naquele momento era o repeteco da cena. Quantas vezes aquilo já tinha acontecido com ele. As músicas do menu eram diferentes, a cena era a mesma.

Deitado num sofá velado em fumaça, os exageros do momento eram evidentes. Tentava esconder algo de si mesmo. De vez em quando ofuscava com sal nos olhos. Desespero socado goela abaixo, as vezes engasgava.

Dentre muitos transtornos, preferiu a sociopatia para poder se entupir de sorvete e chocolate, enchendo o estomago, o ego, e o espaço vazio etiquetado “esconderijo”.

Off. Estava na hora de desligar e apertar o botão do DVD, o que era fácil. Para ele o difícil era decidir o meio que escolheria para pressionar definitivamente o off da cabeça.

Tinha poucas lembranças da infância. Sem parentes para alimentá-las, vivia de outros como se fossem suas, memórias que julgava consistentes. Mãos na cabeça, levou o roteiro daquele filme até onde deu. Estava precisando um pouco dele mesmo. Revirou em todos os lixos conhecidos e não encontrou.

Fechou os olhos esperando não acordar no dia seguinte, era o melhor jeito que conhecia apesar de um único incomodo: o eco da cabeça insistindo com vigor... COVARDE!

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

BARENAKED LADIES

Música alta, “Ois” e Olás”.

Seus peitos olharam para mim, me apontaram como me escolhendo.

Coxas grossas, bem desenhadas queimadas de sol. Pequenos pelos loiros se eriçam da pele. Você disfarça o arrepio na espinha, seu sorriso não.

Mini short e biquíni, os pequenos laços estavam à mostra e o triangulo de água do mar estampado no jeans denunciava.

Olhos pregados nos meus por todas as milhões de vezes que eles se cruzaram. Um copo a mais, um trago a mais, mais perto.

Boca na boca, língua na língua, mais longe dali.

Minhas mãos passeiam pelas tais coxas grossas despenteado aqueles pelos dourados que se erguiam em uma só direção, no tato um arrepio, no pescoço um gemido.

Mãos nos pelos agora cacheados, língua na língua, língua nas pontas, bocas pelo corpo. Bocas nos pelos, pele na boca, boca na boca, línguas que brigam. Triângulos molhados, explosões, arrepios, gemidos, sorrisos.

Tudo se embaralha, miscigena e contorce.

Música alta, o dia já é noite, sorrisos sem despedida.

Seus peitos olharam para mim e me apontaram, como se dissessem até logo.

Amanhã eu penso no que fazer, porque hoje eu levo comigo espalhados no corpo, os restos do que sobrou de você.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

ALGUMAS GARRAFAS DE VINHO

Decidiram que era hora de uma garrafa de vinho. Há tempos insistiam em ir ao restaurante japonês tomar a mesma garrafa de saque que sempre tomaram, mesmo antes da briga que os separou por algum tempo.

Estava na hora de uma garrafa de vinho. Quase uma evolução depois de dizerem se odiar mutuamente. Passionais. Decidiram pela garrafa de vinho pois há alguns sushis atrás já não se provocavam a ponto do castigo permanecer por semanas. Fora que tomar uma garrafa de vinho era sempre legal, além de deixar as pessoas felizes.

Jamais pararam de se ver, mas entre fases mais difíceis na convivência davam-se castigos silenciosos. Não se comportavam um com o outro, ficavam de castigo deles mesmos por algumas semanas. Melhor, já tinham chegado a meses tempos atrás.

Estavam aprendendo a conviver depois de já terem sido melhores amigos, um casal e logo em seguida quase se matarem. As marcas das unhas dela ainda estavam na pele dele. As das palavras dele na cabeça dela. Mas gostavam da presença física um do outro. Da companhia. Então decidiram aprender a conviver.

Sim, coisa de maluco esses dois e por isso foram à garrafa de vinho que sabiam , não ia ser uma, duas, e talvez mais um ou dois copos. Estavam alegres. Haviam se provocado no caminho, mas foram inteligentes a ponto de perceber que uma discussão ali não valeria à pena. Era mais legal sair para o vinho.

Ele foi deixá-la no apartamento. Um prédio recém reformado do centro da cidade. Subiu com ela e no elevador ele roubou um beijo. Ela sem cena ainda disse não, mas ele com toda delicadeza de um Gorila fez que não ouviu. Riram, e ele ainda disse:

- “Tudo bem, amanhã você não vai lembrar disso mesmo...”

Riram mais.

A porta do elevador se abriu e ela saiu. Ainda demorou um pouco para a porta fechar e ele ouviu o grito dela pedindo socorro para achar a chave de casa. Foi ajudar, e foi a vez dela roubar um beijo. Competitiva e feminista não podia ficar para trás. Não se renderia. Precisava mostrar atitude. Com raiva, ela também precisava roubar um beijo.

No meio do corredor, entre a porta da casa dela e o elevador dele, línguas se entrelaçaram e corpos se amassaram por quanto tempo não se tem a menor idéia, afinal o vinho em certa quantidade deixa as pessoas sem muita noção de tempo. Um beijo de fato, afinal ela não podia ficar prá trás, e então disse:

-“Tudo bem, eu não vou lembrar disso amanhã...”

Riram muito, claro, afinal, no mundo deles isso era engraçado. Ele sabia que era hora de ir embora, e foi para o seu elevador. Ela para a porta do apartamento.

- “do próximo eu quero lembrar viu?!”
- “OK! Da próxima vez só uma garrafa de saque!”

Assim a porta do elevador fechou, a porta do apartamento se abriu, e eles riram copiosamente, porque descobriram de novo que uma garrafa de vinho deixa as pessoas felizes, mas duas, e talvez mais um ou dois copos deixa as pessoas felizes ainda mais felizes.

Eu sabia essa história aos detalhes. Cada movimento dela, cada sorriso dele. Ouvi a mesma versão repetida por todos os oito anos, nove meses e dezessete dias que fomos vizinhos, até ela se mudar. Conheci o casal e acompanhei cada dia que ela esperou pela volta dele, que morreu aquela noite com um tiro no peito, disparado pela esposa que o aguardava ao lado do carro estacionado num beco, com um trinta e oito numa mão, e uma garrafa de vinho na outra.